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A NOITE DOS TAMBORES SILENCIOSOS

    O Brasil vive atualmente um cenário político conturbado e um clima de hostilidade entre grupos distintos da sociedade. Casos de intolerância contra religiões afro brasileiras, no entanto, não são novidade, e encontram hoje um território permissivo para sua disseminação, uma vez que este conflito está muito distante de virar uma pauta social de grande relevância pela sociedade. 

      Sem um real apoio da sociedade através de instituições como a escola e a polícia, essas comunidades entendem como dever fundamental a militância e a resistência contra a intolerância, formando assim um movimento de grupos ligados a religiões de matriz africana no Brasil interessados em pensar, discutir e militar, não apenas contra a intolerância, mas por serem respeitados socialmente.

 

          Apesar de identificarmos, atualmente, novos rumos e contextos dessa luta pela liberdade de culto e práticas religiosas, podemos afirmar que no decorrer da história, núcleos ativos da comunidade negra se organizaram, firmando suas raízes em territórios onde, através do livre direito de suas práticas religiosas, não deixaram que estas fossem extintas, identificando portanto a luta e resistência cultural como uma das características mais predominantes da história dos afro descendentes no Brasil. 

 

       Desde sua origem, no inicio do século XVII, o maracatu nação, também conhecido como “candomblé de rua”, segue resistindo como manifestação cultural legítima de um povo. Sendo, até hoje, alvo de ataques de ódio, entende-se como de fundamental importância a constante atividade pela salvaguarda do maracatu como patrimônio cultural imaterial, oferecendo a ele ferramentas educacionais e de conscientização para o fortalecimento e valorização dos indivíduos em particular, e do grupo como um todo. 

            

          No entanto, vale lembrar, que embora esteja marcado na história, que mulheres tenham sido, por diversos motivos, peça fundamental na criação e manutenção de práticas religiosas que originaram o candomblé, conferindo a elas um grandioso papel de destaque e respeito como grandes matriarcas em suas comunidades, tal fato não as impediu de serem excluídas de algumas práticas culturais, como a permissão para participar do batuque de maracatu. 

 

      Na última década, no entanto, um novo movimento legítimo e espontâneo vem emergindo no interior de algumas comunidades de maracatu. É o caso da Nação de Maracatu Encanto do PIna (NMEP), que elegeu em 2008, de forma inédita, a primeira mulher mestre de bateria de um maracatu nação. 

       Tal fato tem injetado nas nações de maracatu outras pautas e formas de luta pela igualdade, liberdade e contra intolerância, assumindo atualmente não apenas a luta pela liberdade de culto, como também pela igualdade de gênero.

        Além da participação marcante das mulheres, é fácil notar também uma forte presença de homossexuais e transgêneros no maracatu, geralmente caracterizados pela personagem da “Baiana Rica”. Tal fato se dá por inúmeros fatores, entre eles, e talvez o mais importante, seria o fato de o candomblé ter sempre acolhido homens e mulheres homossexuais, sendo esta condição nunca ter sido empecilho para que se tornassem respeitados em seus territórios religiosos.

 

    Segundo a antropóloga Teresinha Bernardo: “O candomblé liberta as pessoas para a vida”. Liberta também para a sexualidade. O que para muitos é considerado perversão, desvio ou tara, no maracatu são comportamentos absolutamente naturais. O candomblé no entanto,, não é permissivo, mas entende que não criminalizar comportamentos ou orientações sexuais é muito diferente de ser conivente com abusos de qualquer ordem.

    No terreiro, a homossexualidade sempre esteve presente de forma muito natural e tranquila. Nunca foi considerada doença nem perversão. Claro que algumas mentes colonizadas tentaram impor outros padrões e obrigaram muitas vezes gays e lésbicas a se esconder, reprimindo comportamentos, controlando os corpos, coibindo desejos. Mas, na sua essência, o candomblé sempre aceitou e respeitou a condição humana, por isso é certamente a religião com a maior proporção de homossexuais assumidos, inclusive entre as lideranças.

       É nesse cenário de miscigenação de tão diferentes povos, em  uma cidade movida a sons, tradições e alegria, repleta de casarões históricos, praias, igrejas, museus, feiras de artesanato, e até fortalezas de pedras, que a capital da beleza, marcada pela colonização holandesa e portuguesa, vira palco para inúmeras apresentações e celebrações culturais afro-brasileiras. 

      Uma delas, e talvez uma das mais emblemáticas e cativantes, é a Noite dos Tambores Silenciosos que acontece em duas segundas-feiras distintas (dia das almas para católicos e dos eguns nas religiões afros),  sendo a primeira em Olinda na segunda de pré-carnaval, e a outra no Pátio do Terço (Recife Antigo), em pleno carnaval. 

 

     Em uma linda noite de cerimônia e celebração, inúmeras nações de maracatus de baque-virado, procedentes de todo o estado de Pernambuco, se reúnem com a finalidade de louvar a Virgem do Rosário, padroeira dos negros, e reverenciar os ancestrais africanos, que sofreram durante a escravidão no Brasil Colonial.

 

        Os ritos de reverência aos antepassados é um costume que os escravos trouxeram para o Brasil, como na cerimônia de Coroação do Congo, onde elegiam seus reis e rainhas, lamentavam seus mortos e pediam proteção aos Orixás.

 

      No Brasil, os negros privados de sua liberdade não podiam manifestar suas crenças e tradições. Realizavam então cortejos de lamentações às escondidas e em silêncio, dando origem mais tarde ao nome da celebração: Noite dos Tambores Silenciosos.

 

            Essa festa de evocação e reverência era realizada no pátio da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, localizada na Rua Estreita do Rosário, no bairro de Santo Antonio. Entretanto, em 1965, por iniciativa do sociólogo e jornalista Paulo Viana, deu-se início a uma campanha de valorização e resgate dos ritos africanos, que durante o período da ditadura militar entrou em decadência, pois o número de participantes desse tipo de evento foi bastante reduzido devido às perseguições políticas.

              Em 1968, a Noite dos Tambores Silenciosos de Recife passou a ser realizada no Pátio do Terço, lugar onde tradicionalmente aconteciam as festividades afro descendentes. Hoje, o ritual é destaque no carnaval pernambucano, faz parte do calendário das festividades de Momo, sendo prestigiado por foliões, curiosos e turistas de toda parte do Brasil e até do exterior.

              A cerimônia começa com a apresentação dos maracatus de baque-virado, que são considerados nações africanas. O tambor tem lugar de destaque nesse evento. Segundo Valente (1952-1956), o tambor é considerado o principal instrumento da orquestra dos xangôs e tem uma função mágica nas religiões africanas. Sua sonoridade envolvente tem um poder hipnótico sobre adoradores de Orixás representando um elo mágico entre as criaturas humanas e as divindades, espécie de meio de comunicação entre o mundo material e o mundo espiritual dos Orixás.

 

             À meia-noite o ritual chega ao auge quando as luzes das ladeiras de Olinda e do bairro de São José no Recife são apagadas e o público presente no pátio silencia. Tochas são acesas e levadas até a porta da Igreja pelos líderes dos maracatus. Uma voz entoa loas (verso de louvor, louvação em versos improvisados ou não) em louvor a Rainha dos negros, Nossa Senhora do Rosário. O silêncio é interrompido apenas pela batida intermitente dos tambores de todas as nações de maracatus, que entoam cânticos de Xangô (um dos mais populares, prestigiosos e divulgados orixás dos candomblés, terreiros, macumbas). A marcha dos dançarinos é marcada pela batida de tambores. Estandartes trazem o nome dos maracatus e são seguidos por uma corte de reis e rainhas africanas devidamente caracterizadas.

 

             Nesse momento, o babalorixá responsável pelo ritual, alinha os batuques e rege um coro de mães-de-santo que rezam com ele, e termina o culto abençoando os membros dos maracatus e o público presente na cerimônia.

A Noite dos Tambores Silenciosos é também um evento de resistência e afirmação da identidade e história do povo negro. Em espaços simbólicos, que foram usados para acomercialização, castigo e até mesmo sepultamento dos que foram escravizados na África e trazidos para Pernambuco, reis, damas e batuqueiros recriam a corte real em um dos momentos mais especiais do carnaval de Recife. Uma das noites mais mágicas da minha vida. 

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